Poemas

domingo, 22 de abril de 2007

O colecionador de ausências




Quando olho para mim não me percebo
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.


- Fernando Pessoa-



Colecionava tudo. Primeiro foram figurinhas, depois selos e por fim ausências. Um bom colecionador de ausências.
Começou na escola. A professora cobrava minha fala, mas eu tinha ausência no modo e no jeito de me pronunciar. Meu silêncio era uma corda de sisal que amarrava de forma precisa e incorruptível meu discurso; a escrita foi meu punhal, minha primeira arma. Por isso nunca me ocultei de meus crimes. Nunca neguei ausências, guardava-as.
Ausentava-me nos passos, a cabeça procurava o silêncio do chão. Era atingido por raios e relâmpagos, e as poças nas calçadas eram lâmpadas de aço que me lembravam a toda hora que eu não estava. Vez ou outra baixava o corpo para amarrar os cadarços e recolhia uma pedra: minha ausência mineral.
Lembro-me que também colecionei latas, que eram minha ausência de ferro no sangue, minha anemia e meu pouco peso; colecionei maços de cigarro de fumaças ancestrais: minha ausência de fôlego.
Descobri após algum tempo que poderia fabricar minhas próprias ausências, algumas de argila, outras de madeira, e outras de sonhos (de uma faina delicada) onde eu pudesse pôr qualquer despedida ou qualquer abraço negado.
Os marcadores de livros eram vários e variados, um tinha uma serpente de letras de uma cicuta incurável. Quando cansado da realidade abria um livro na página marcada e me ausentava em grandes navegações ou na derrubada de gigantes eólicos.
Eu era o que se podia chamar de um colecionador ideal, pois ignorava ser. Talvez por esquecer as horas e os ponteiros e me ausentar ao que me espreitava. E foi este, o tempo, que imperceptivelmente colecionava, que veio, por fim, ao meu encontro. Primeiro fingi não vê-lo. Adiava a infância pelas décadas e pelos compromissos: minha ausência temporal. Tampinhas de garrafa eram várias e variadas, e até hoje trago rugas no rosto para marcá-las.
Hoje, quando a noite mostra seus silêncios, e minha ausência de sono me coleciona, penso em meu primeiro punhal (que trago escondido sob as unhas) para que as madrugadas que me restam saibam que colecionei palavras e que nunca estive só, talvez ausente, mas nunca só.

6 comentários:

Anônimo disse...

Ausência, inevitável presença...

-~- disse...

sábado é dia de perfume e muitas assinaturas... já reservei o dinheiro para meus exemplares :)

Papoético disse...

sua, minha, ou nossa ausência mineral, a pedra: se comer engorda?

-~- disse...

sumiste?
queremos posts...

Ana Luiza disse...

.







E ele colecionava também as nossas distâncias, ou estas estariam carregadas de um branco afeto que jamais lhe permitisse chamar 'ausências'?

Maria Betânia disse...

Muito intrigante teu poema, de uma desnudez impressionate.
Vi-me nele alguns momentos...
" Colecionador de Ausências" é um pranto e um grito paradoxalmente.
Parabéns.